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Ensaios-->Raízes Escravizadas, porém esquecidas -- 15/10/2001 - 22:51 (André Gobbo) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Raízes Escravizadas, porém esquecidas


Oficialmente, a escravidão é declarada extinta no Brasil pela Lei nº 3,353 de 13 de maio de 1888. A “Lei Áurea”, como foi batizada, não caiu do céu, nem foi posta em prática por vontade única e exclusiva da princesa Isabel. Ela foi muito mais uma decorrência da pressão econômica do domínio inglês, que obrigou o Brasil a assinar e ratificar em 1850 um acordo que permitia aos navios ingleses vistoriar em alto mar navios suspeitos de praticarem o comércio de escravos.
Também as leis “do ventre livre”, de 28 de setembro de 1871, e a “dos Sexagenários”, de 28 de setembro de 1885, são decorrências de pressões internacionais e de pleitos encaminhados por grandes proprietários de escravos no Brasil. Ambas conservam o direito do homem branco sobre o negro, libertando – na realidade – o branco do peso econômico que significa manter um negro escravo.
No artigo primeiro da Lei do Ventre Livre está escrito: “Os filhos de mulher escrava, que nacseram no Império desde a data desta lei, serão considerados de condição livre.” O parágrafo primeiro, porém, ressalva: Os ditos filhos menores ficarão em poder e sob a autoridade dos senhores de suas mães, os quais terão obrigação de cria-los e tratá-los até a idade de oito anos completos. Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da mãe terá a opção, ou de receber do Estado a indenização de 600$000 reis ou de utilizar-se dos serviços do menor até a idade de 21 anos completos. É fácil perceber que a referida lei não concedia a liberdade do filho de forma imediata, mas apenas após ter completado 21 anos, como forma de indenizar o proprietário da perda de um bem.
De forma geral a abolição da escravatura em Santa Catarina se cumpriu de forma pacífica, uma vez pela campanha abolicionista que vinha sendo desenvolvida, outra é que a participação do elemento escravo na economia e na população era pequena, e principalmente pela substituição paulatina e intensiva do braço escravo pelo braço livre do imigrante europeu.
Com a libertação definitiva dos escravos pela Lei Aúrea em 1888, a maior parte dos antigos escravos ficara nas proximidades das propriedades de seus antigos senhores. Os escravos libertos em Porto Belo construíram perto do antigo povoado de Bombas, no terreno próximo à curvo do piolho, a sua senzala, uma casa grande de construção rústica com diversas divisões para servir de morada para várias famílias.
Os últimos moradores da casa grande a abandonaram por volta de 1945. a construção se desfez, os vestígios foram apagados quando o terreno foi transformado em campinho de futebol.
Na região de Bobos, grande número de escravos viviam na fazenda de Chico Peixoto, perto da “Casa Branca”. A maior parte deles descendia de Zé Criolo, um escravo que servia, durante muito tempo, de procriador e chegou à idade respeitada de 105 anos. Libertos, os ex-escravos com suas famílias continuaram perto da fazenda, formando um núcleo habitacional na foz do Rio dos Bobos, onde ainda hoje representam numerosa parte da população de Santa Luzia.
Com cerca de 20% de sua população com origem negra, no século 19, no município de Porto Belo (SC) ainda encontram-se vestígios de compra e venda de escravos. De maneira geral eram comprados pelos grandes proprietários de terras para os serviços mais pesados nos engenhos agrícolas e nas madeireiras, além de tarefas domésticas e das fazendas. As compras e vendas de escravos eram registradas em cartório e seus valores variavam de acordo com a idade e o sexo. Valorizava-se o escravo que possuía habilitações, além do seu vigor físico. O abolicionismo gradual gerou algumas situações conflitantes, como o não registro, pelo senhorio, dos filhos, mesmo mestiços, a partir da lei do ventre Livre que declara que o filho de mulher escrava que nascesse a partir da data da Lei.
Seguir uma estrada precária. Costear matos, plantações e campos. É difícil encontrar uma residência, mais fácil são algumas ruínas de antigas construções abandonadas. O destino é o bairro Valongo, no município de Porto Belo. Quanto mais se avança a certeza que erramos a estrada fica mais nítida. Mas não, é esta estrada abandonada e precária que rasga montes, plantações e campos que nos leva até o Valongo.
Distante 22 quilômetros do centro do município, se pode dizer que é um dos bairros mais simples do município. De lá não se avista o mar, muito menos carros, posto de saúde... apenas algumas casas, a escola e um único templo da Igreja.
São 25 moradias habitadas por descendentes afro-brasileiros em sua totalidade, que carecem de melhorias na infra-estrutura do bairro. Ao cruzarmos na frente da Escola Isolada Valongo, as crianças desfrutam da merenda escolar e aproveitam o intervalo para pular com um pé só as argolas de mangueiras colocadas no pátio da pequena escola, de uma sala só, um banheiro e uma cozinha. A escola atende os alunos até a 4ª série do primário, depois disto, ou abandonam os estudos, ou então, enfrentam a distância para estudarem em Porto Belo ou Tijucas (este município distante 12 quilômetros da vila).
A professora é uma figura humilde. Com uma saia pelas canelas, cabelo grisalho amarrado na nuca, mostra-se atenciosa e carinhosa com os alunos que a chamam de “Tia”. Elsa Alves (54), mora há três anos no Valongo. Ela e seu esposo foram enviados pela Igreja Adventista do Sétimo Dia, de Florianópolis, para auxiliarem os moradores do bairro. É ela que, sem mesmo termos chegados à vila, nos dá as primeiras impressões do bairro e carrega o título de ser a única branca do local.
Conforme Elsa, no Valongo ninguém passa fome, alguns têm terras e comida farta. Quem não é aposentado trabalha na prefeitura, ou então fazem trabalhos para os fazendeiros das redondezas. Assim sobrevivem! Além disso também ganham roupas e calçados arrecadados em campanhas de solidariedade, e ajuda dos fiéis de outros templos da Igreja Adventista, que inclusive doa os uniformes escolares para as crianças.
Elsa diz que já tentou resgatar a história da vila, mas só sabe que nas veias de todos os moradores corre o sangue dos antepassados escravos trazidos da África por um navio negreiro e abandonados em alto mar porque não poderiam ir para o Porto, senão seriam mortos. Foi então que os sobreviventes se esconderam e se isolaram entre os morros do interior de Porto Belo, criando assim o Valongo.
No Valongo existem apenas três famílias: Fayal, Caetano e Costa, que há gerações – cerca de 100 anos - casam entre si, mas mesmo assim, até hoje, nenhum caso de deficiência física ou mental foi registrada nas crianças. Uma das dificuldades apontadas pela professora é o difícil acesso até o bairro: “Quando chove, por aqui só passa cavalos e carroças”.
Chegou a hora de descermos mais um morro para chegarmos na vila. Enquanto andávamos a professora organizava a fila dos alunos para mais um turno de aula. Disciplinados, os pequenos dos cabelos pichacos, colocavam a mão no ombro do colega da frente mantendo sempre a ordem, a disciplina e o respeito pela professora branca.

A VISITA – Mais algumas centenas de metros chegamos ao bairro. As casas são bem espalhadas e parecem seguir um padrão. Todas de madeira, com tamanhos semelhantes, portas e janelas da mesma madeira, sem tinta, com jardins cercados e protegidos por cães vira-latas. A única construção de tijolos, revestida com massa corrida, devidamente pintada e cercada é a sede da Igreja que logo no portão de entrada preserva intacto o ninho de um João-de-Barro.
De longe, Cléa Caetano (28) notou nossa presença. Pedimos licença e entramos no pátio de sua residência. Assim como toda a sua casa, notamos que a cozinha era extremamente humilde. Panelas velhas eram penduradas na parede, o fogão à lenha era feito de tijolos com uma chapa de ferro. Próximo ao meio-dia a madeira queimava e fazia com que as panelas se soltassem o cheiro da comida. Na mesa em que logo receberia o alimento para a família de três filhos, nos quatro cantos da toalha, entre desenhos de flores coloridas o que chama atenção é a mensagem: “A Glória do Senhor resplandece a minha vida”.
Cléa, assim como a maioria dos entrevistados, reclama da precariedade das estradas e do difícil acesso à cidade. Acanhada, não é muito de conversa mas não esquece de lembrar as dificuldades para conseguir assistência na área da saúde. Da aula seus filhos retornam correndo na companhia dos colegas e, ao entrarem no quintal dois cachorros correm ao encontro. Assim como a mãe, as crianças acanhadas nos cumprimentam e correm para a cozinha, onde reviram as panelas, se acomodam ao redor da mesa e nos espreitam com olhares duvidosos. Nos despedimos e caminhamos mais um pouco pela estrada embarrada que corta a vila.
No Sertão do Valongo, há uma pequena comunidade rural que se distingue dos demais grupos que vivem na região. Reservados e formando uma grande família, moram no local cerca de 100 pessoas. Converteram-se à religião adventista há mais de 70 anos, quando um vendedor de livros religiosos passou pelo local. Vivem isolados e têm a carroça como principal meio de transporte.
Têm na igreja sua principal atividade social. As mulheres não trabalham fora, 98% dos homens são funcionários braçais da prefeitura e quando estão no emprego é praticamente o único período que se afastam da comunidade. O restante trabalha na agricultura de hortaliças, milho ou cana de açúcar para consumo próprio.
O pastor Benedicto Alves, 60 anos, líder da comunidade, além de pregar a religião auxilia a todos. Único valonguense que possui automóvel, quando necessário sai do sertão para fazer o transporte de doentes, já que no lugar não existe posto de saúde. A água encanada chegou em início de 1999 e a iluminação pública nos primeiros meses de 1998.
Farmácia, mercado, padaria, não existem. Ônibus somente na localidade de Santa Luzia, distante cerca de 10 quilômetros. Para conseguir mantimentos e remédios, quando não são doados por entidades do município, os moradores vão ao centro de Porto Belo ou Tijucas para comprar, na maioria das vezes de carroça ou de bicicleta.
Hoje não existe no sertão ninguém que saiba dizer como iniciou a comunidade ou se alguém possui algum parentesco com ex-escravos. Segundo o pastor, o tempo fez com que eles perdessem a história de sua origem. Ele diz que uma valonguense, que faleceu em 1998 com 99 anos, contava que seus pais e outros escravos foram os primeiros moradores da região. Trata-se da Senhora Regina Faial, nascida em 1900 que, em 1993, foi considerada um símbolo vivo do Sertão do Valongo pela Prefeitura Municipal.
É na beira da estrada, sentado ao lado de um amigo um pouco mais novo que encontramos Joel Manoel Fayal, de 60 anos de idade, mesmo que sua aparência não demonstrasse ser tanto. Ele é mais um que nasceu, cresceu, casou e criou os seus sete filhos na vila. Com uma enxada ao lado, pele negra e olhos azuis como o céu daquela manhã outonal ele lembra de sua mãe, que falecera com 99 anos de idade, dizendo que ela poderia nos contar muita coisa sobre o lugar. Sua mãe é a Regina Fayal, que ao morrer parece ter levou consigo toda a história deste povo. Se a história do reduto foi sepultada junto com a mãe de Joel, pelo menos as dificuldades enfrentadas atualmente ele mesmo faz questão de relatar: “A nossa agricultura está quebrada. A venda da banana – uma das atividades que substituiu a extração da madeira na região - não paga nem o serviço de capinar no meio da plantação, nos pagam oito centavos o quilo”, reivindica.
Sob uma robusta árvore Luiz Manoel Costa, de 36 anos, estava descansando sob o sol ardente. No seu rosto escorria o suor, resultado do trabalho de uma manhã inteira. Ele queixa-se que o lugar não é bom porque não oferece empregos. “Quem trabalha, trabalha na prefeitura”, salienta, gesticulando bastante tendo em mãos um facão. Bigode longo por fazer, cabelos curtos e pichacos, Luiz também diz que hoje em dia o lugar não é mais isolado do resto do município como era antigamente, isso porque, os fazendeiros das redondezas estão abrindo novas estradas e facilitando o acesso. Luiz também nasceu na vila e dali nunca saiu para tentar a vida em outro lugar e afirma que, apesar de todas as dificuldades o Valongo não é um lugar ruim de se morar. “É bonitinho”, ressalta. E complementa: “Deus sempre protege isso aqui e sempre nos dá um meio para vivermos aqui dentro, assim como enviou vocês aqui”.
Logo à frente Eliana Caetano da Costa (28), merendeira licenciada da escola, embalava sua filhinha Késsia, de apenas dois meses de idade, que teimava em chorar. É o primeiro filho do casal. Eliana se conforma com o lugar que, conforme ela gosta de morar, e diz que não enfrenta muitas dificuldades. Quanto às condições da estrada ela sente-se acostumada em viver no meio da lama: “Vocês estranham porque são de fora e estão acostumados com o asfalto”.



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